"Publicação eventual"
"Os rapazes do meu tempo! E nunca em Portugal os rapazes foram mais rapazes do que aqueles que eu conheci e estimei em 1917, no café Martinho, porque nenhuns souberam como eles acreditar tanto na sua mocidade. Nós, em 1917, acreditávamos em nós, na nossa voluptuosa e optimista juventude. Ser moço era para nós um dever patriótico. Portugal envelhecido - para remoçar-se precisava da mocidade convicta e sincera dos rapazes. E nós, por patriotismo, não só queríamos remoçar Portugal com a nossa juventude, nós queríamos também fazer de Lisboa a cabeça da Europa. E a mocidade daquele tempo, que já tinha lançado algumas revistas modernistas - atirou para espanto de todos os portugueses uma revista que excedia tudo quanto em audácia e originalidade se tinha até então publicado. Foi o Portugal Futurista. "
(Rebelo de Bettencourt, O Mundo das Imagens, Lisboa, Ressurgimento)
Assim resume a posteriori Rebelo de Bettencourt o contexto do surgimento de Portugal Futurista, naquele é um dos raros testemunhos pessoais que chegaram até nós sobre essa revista, agora mítica, cujo centenário se celebra em 2017.
Portugal Futurista não foi, efectivamente, uma revista qualquer. Apesar (et pour cause) do seu número único, a sua apreensão imediata é bem reveladora do conteúdo, tão invulgar quanto o de Orpheu dois anos antes, e que ainda hoje nos faz sorrir. Existe, aliás, uma carta datada de 11 de Julho de 1917, que mostra uma continuidade entre as duas revistas, ainda que falemos de coisas (e figuras) diferentes. Da autoria de Fernando Pessoa a carta fala da possibilidade de ainda editar um terceiro número de Orpheu, edição que, como sabemos, nunca chegou a acontecer na sua vida. De resto, é o próprio Pessoa que está no centro, simultaneamente, de uma continuidade e de uma ruptura desta revista: se por um lado inclui poemas em nome próprio ("Episódios" e "Ficções de Interlúdio") que estão nos antípodas do que poderíamos considerar 'futurista', é da sua autoria, via Álvaro de Campos, o texto-manifesto "Ultimatum", alvo de uma curiosa separata que põe em causa a própria datação clássica da revista (no fim do texto, é-nos dito que "Saudação a Walt Whitman" apareceria em Outubro de 1917 em Orpheu 3...).
Efectivamente, dada a inexistência de publicitação prévia ao aparecimento da revista, é apenas através de um mapa astral que Pessoa fez (presente no Espólio na BNP) que temos conhecimento de uma data de surgimento (e venda de primeiro exemplar - 31 de Outubro, às 9h) e de apreensão da revista (2 de Novembro). Até aos nossos dias, muito se tem especulado sobre estas datas, já que nunca se conseguiu localizar o auto de apreensão. Este é o único documento que aponta uma possível datação, e esclarece que, contrariamente ao que se tem dito, não foi logo apreendida à porta da tipografia.
Existe uma complexidade interna neste número único, de que são apanágio as duas folhas volantes, uma de promoção dos "Bailados Russos" - que chegariam a Lisboa em Dezembro - outra para divulgar a obra, editada daí a quinze dias, da autoria de um dos elementos fulcrais da revista: falo de A Engomadeira, de Almada Negreiros. Conhecem-se, aliás, três variantes da folha volante "A Engomadeira", de que demos conta na exposição comemorativa do centenário da revista (BNP, 2017). No que diz respeito a "Bailados Russos", ainda que o texto seja assinado por três pessoas - Almada, Ruy Coelho e José Pacheco, sabemos (e percebemos ao ler) que Almada foi o único a escrevê-lo, logo em Outubro de 1917, quando ainda se falava da vinda a Lisboa dos Bailados Russos e ainda sem que o escritor os tivesse realmente visto (só estarão em Lisboa entre Dezembro desse ano e Janeiro de 1918, tendo feito 11 espectáculos ao todo).
Por outro lado, também há que relacionar o aparecimento desta revista com outro acontecimento (futurista) fulcral de 1917: a 1ª Conferência Futurista, levada a cabo por Almada e Santa-Rita no recém-inaugurado Teatro República (actual São Luiz), em Lisboa. Em Portugal Futurista, não só aparece o programa da conferência de Abril como temos igualmente a reprodução integral dos manifestos lidos nas páginas da revista: Manifesto do Music-Hall (de Marinetti, de 1913), Manifesto da Luxúria (de Valentine Saint-Point) e Manifesto Futurista às Gerações Portuguesas do Século XX (texto escrito por Almada para a Conferência).
Não podemos esquecer que uma das particularidades de Portugal Futurista é a sua ligação a outra publicação, O Heraldo, de Faro. Como se sabe, este periódico (estimulado também pela novidade bombástica de Orpheu de 1915) procurava promover o movimento futurista, mantendo uma coluna, desde fins de 1916, em que revelava textos desse cariz, assinados por pseudónimos criativos. É neste jornal algarvio que ficamos a saber, numa carta datada de 5 de Agosto de 1917, escrita por Santa-Rita Pintor e Almada Negreiros (por si próprios intitulado “Comité Futurista', surgido em Lisboa no ano anterior), que esta revista futurista apareceria brevemente. Tristemente, porém, O Heraldo terminaria daí a duas semanas e não veria o aparecimento de Portugal Futurista.
Revista irrepetível, enigma editorial, pedrada no charco em tempo de guerra e aparições, Portugal Futurista foi, em suma, uma tentativa de insurreição de uma certa juventude esclarecida, unida na sua diversidade para introduzir Portugal no século XX literário e artístico.
Ricardo Marques