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Vítor Silva Tavares assume a cenografia e os figurinos para o espectáculo Deseja-se Mulher, em 1963. A conversa desenrola-se como numa meada de histórias a propósito da peça de Almada Negreiros.

 

Sílvia Laureano Costa (SLC) – Fale-nos da peça Deseja-se Mulher, na Casa da Comédia, em 1963...

Vítor Silva Tavares (VST) – A Casa da Comédia era um teatrinho que ainda nem sequer tinha cadeiras nem nada. Tinha uns banquinhos em frente ao pequeno palco. Sentados lado a lado, eu abordo o Almada: «Mestre, tenho estado a pensar nos anjos. E não estou a ver nem daqueles miúdos vestidos de anjos das procissões; nem aquelas imagens dos chamados santinhos em que vemos os anjos.» E ele nada. Eu a ver se ele me adiantava qualquer coisa sobre a questão dos anjos e nada. E eu insistia: «Tenho pensado nisso. Tenho isso por resolver…» Ele arranca: «É muito simples. Vou-te contar como é. Estamos aqui. De repente, sai do palco, ali da esquerda, atravessa o palco à direita. Eu olho e digo: “Ahhh! Um anjo!” Estás a perceber?» «‘Tou: o mestre está aqui sentado. De repente sai uma coisa daquele bastidor do lado esquerdo, atravessa o palco, sai pelo bastidor do lado direito. O mestre olha e diz: “Ah! Um anjo!”» Diz ele para mim: «Estás a ver como percebeste?!» Animado por esta preciosa indicação do Almada, saí de lá com um grande ponto de exclamação na cabeça a dizer: «‘Tou lixado! Dali não sai nada! Isto ainda é pior. O Almada tem de ficar tão surpreendido que diga: “Ah! Um anjo!” Isto ainda é pior!» Andei uns dias muito angustiado, sem saber como é que havida de resolver a questão dos anjos. Um dia, estou no Conde Barão e passa um homem a vender cruzetas, cabides. Embrulhados numa guita, levava uns quantos cabides às costas. Eu olho para aquilo e vi o anjo! «Uhhh! Amigo, quanto é que custa cada cabide?» «Cinco paus.» «Dê-me já aí dois ou três cabides.» Comprei dois ou três cabides. Entretanto, os ensaios continuavam e aproximava-se o momento em que se tinha de fazer o ensaio geral. O resto das coisas já estavam feitas. Mas faltava-me o anjo. Numa noite, levo para casa cartolina, purpurina ou brilhantina, cola, essas coisas todas. Com um bocado de cartolina faço um cilindro e ponho na parte de cima da cruzeta. Como fica aberto da parte de cima: ripar. O que deu uma cabeleira barroca, cheia de caracóis. Duas bolinhas de papel de prata azul e uma bolinha de papel de prata vermelho: uma boca, dois olhos anjoarianos. Cabeça de anjo já havia: cabelo, olhinhos, boquinha. Muito bem. Cartolina: toca a desenhar uma asa e outra asa. Com a cola fazer os sinais das penas. Depois atirar lá para cima a brilhantina. Ficou aquilo tudo a brilhar. Depois era preciso fazer uma veste, uma gola em papel. Sempre tudo em papel. Papel e cartolina. Papel mais fininho, [uma gola] fazendo com a tesoura aqueles bordados de papel que também servem para as prateleiras e tal e tal. Depois um vestidinho em papel de seda e com purpurina. O actor agachado, pega na cruzeta e atravessa o palco. Como aquilo era tudo material muito leve, ficava tudo tschuuuuuuu... esvoaçante.

O Almada não viu nada disto. Isto foi feito durante a noite. Levei num táxi, com todo o cuidado os dois anjos. Quando chega o momento, estou eu sentado ao lado do Almada, mal os anjos aparecem, o Almada dá um pulo e diz: «Quero levá-los para casa!» «Nem pense, mestre! Tenho umas olheiras até aos joelhos.» «Eu levo-os para casa e tu fazes outros!» Aquilo foi uma luta! Ele queria levá-los para casa. E estávamos na véspera da estreia.

A história do anjo foi assim. O mais engraçado foi o conselho que ele me deu. De facto, ele não me adiantou nada. Pôs-me em situação.

Eu já tinha ajudado o Fernando Amado no conservatório, com os alunos, a fazer Os Amores de Dom Perlimpim com Belisa em seu Jardim [de Federico Garcia Lorca]. E eu fazia uma certa ligação mental com o Garcia Lorca e o Almada. Tive de fazer passarinhos. E tudo isso me levou a imaginar os tais anjos ao olhar para as cruzetas.

O mestre não é o professor. O professor ensina. O mestre não ensina nada. Põe o outro em condição de aprender. Que é muito diferente. O mestre nunca é mestre. O outro é que lhe confere esse papel. O Almada foi o único que eu tratei por mestre.

Eu esmagado pela figura mítica do Almada. Nunca me tinha passado pela cabeça falar, conviver com o Almada. Para mim ele era o representante dos modernistas. Tinha um peso muito grande no meu espírito.

SLC – Como surgiu o convite para a cenografia de Deseja-se Mulher?

VST – Não foi convite. Eu já trabalhava com o Fernando Amado. O Fernando Amado era professor do conservatório. A minha primeira mulher era aluna no conservatório. Eu já escrevia nos jornais e tinha uma grande ligação ao Fernando Amado. Para mim, ele era o protótipo do sábio. A bondade. Ele para mim era um indivíduo solar. A bondade e a sabedoria. Eu tinha uma ligação afectiva ao Fernando Amado, embora fossemos completamente diferentes. Primeiro, eu era muitíssimo mais novo. Ele era monárquico e eu não. Eu anarquista e ele um homem da ordem. Mas depois tínhamos muitos pontos de referência. Sabendo eu os problemas que havia no conservatório, o teatro estava fechado há uma data de anos, eu fui limpar aquilo de forma a podermos fazer pequenas representações. Conversávamos muito. Grandes caminhadas pela cidade. Passo a desenhar para o Fernando Amado... uns desenhinhos, cenografias para o conservatório… sem dinheiro. Como eu era a "mulher-a-dias": o cenógrafo, o figurinista, o serralheiro, o carpinteiro… fui parar à Casa da Comédia. Dadas as ligações do Fernando Amado com o Almada, vamos ter a primeira conversa sobre o Deseja-se Mulher, na casa de Bicesse [de Almada]. Lembro-me de termos ido de comboio até ao Estoril e, depois, alugámos um táxi e fomos até à casa do Almada. Estava lá o Almada com a Sarah. Passámos lá uma tarde inteira, para mim, encantadora. O espaço, os azulejos da Sarah, a peça de metal, que era um açaime que estava na parede como se fosse uma escultura. Ele falou, falou sobre Deseja-se Mulher, o surgimento da ideia em Madrid e a decisão: vamos avançar!

O teatrinho era muito pequenino. A peça era complicada mesmo em termos de cenografia.

SLC – Os desenhos de Almada, da edição em livro, foram usados para a cenografia?

VST – Não me afastei muito. As árvores, a casa… não copiei, mas também não me afastei. O Almada não se meteu nada na cenografia. Os desenhos inspiraram-me porque, como eram muito sintéticos e minimalistas e não havia dinheiro, logo os materiais teriam de ser em papel de cenário, serapilheira, elementos cozidos na serapilheira… E papel manteiga para o programa.

Assim é que, sendo o Fernando Amado um encenador sobretudo de texto, quando menos visível fossem os cenários, luzes, figurinos e tal, tanto melhor para a concentração dos senhores espectadores no jogo dos actores e na maneira como o texto é dito. Isso era a linha de encenação do Amado. Havendo coisas da parte do Amado que eram uma autêntica delícia.

(O Amado era muito distraído. Foi a única pessoa que eu conheci que conseguiu ser atropelado por uma carroça de hortaliça, com um burro.)

A Casa da Comédia era um teatro de amadores e, por isso, era natural que aparecesse meninos e meninas que se apresentavam no teatro para fazerem audições.

Estávamos já a fazer ensaios do Deseja-se Mulher, quando aparece uma menina, novinha, loirinha, cabelo aos caracóis, olhinho muito azul, acompanhada da mãe... Maria Carlota Alves da Guerra. Quem era?: Maria do Céu Guerra! Era estudante da Faculdade de Letras. Já tinha publicado um livro de poemas – que ela tem fechado sempre a boca, que se chama Breves são as Flores.

Estava ali o palco. Ela que subisse e dissesse alguma coisa. O Almada: com aqueles olhos! A graça da rapariga, a espontaneidade. Não precisava de dizer nada. Há pessoas que crescem no palco.

O Almada vinha todos os dias [ver o espectáculo], muito nervoso – porque o texto tinha sido escrito há muitos anos.

SLC – Mas estava nervoso por causa da Censura?

VST – Não. O Almada estava nervoso com algo que pudesse correr mal, nada tinha que ver com a Censura. Cada vez que um actor se esquecia do texto ou se engasgava ele ficava com medo que a coisa corresse mal. Era a primeira vez que ele iria ver esta peça em palco. Ele estava muito nervoso por causa disso. 

SLC – A peça foi aprovada com cortes da Censura. Há um corte, numa didascália, a propósito do figurino da sereia: «“soutien” para os grandes seios». Afinal, como se apresentou a sereia no espectáculo?

VST – Com grandes seios! Para a Sereia, que era a Zita Duarte, fiz uma cabeleira de lã. Não entra na cabeça de um careca uma coisa tão feia! Uma lã tão grossa, muito amarela, ovo! Lembro-me de lhe ter posto dois seios enormes, duas bolas. Com o Almada nunca poderiam ser os seios naturais. Era uma coisa enorme, porque para o Almada tinha de ser tudo enorme. Lá nisso era tipo o Federico Fellini. E a Sereia, que já era um pouco gorda, ficava com um recorte visual enorme. Mas tudo isto ia muito ao encontro da visão do Almada.

SLC – Claro, não era um teatro realista...

[A propósito do realismo no teatro]

VST – Isto foi-me contado pelo Almada: O Alfredo Cortês costumava convidar o Almada para ir ver os cenários das suas peças. Normalmente o Almada olhava para aquilo, torcia o nariz e resmungava. O que frustrava muito o Cortês. Numa determinada peça, no Nacional [Teatro Nacional D. Maria II], tendo combinado com o Cortês, o Almada aparece no ensaio. Entra pela coxia central, o palco está iluminado e o cenário lá está. O Almada olha e começa a abanar com a cabeça, em sinal de aprovação. O Cortês ficou todo satisfeito. Era a primeira vez que o Almada estava a gostar. Iam andando e aproximando-se da boca de cena. À medida que se iam aproximando o Almada diz: «Pronto! Lá está esta porcaria!» E o outro: «Oh, Zé Almada! C’os diabos! Pensei que até estavas a apreciar.» «Pois, é que lá detrás eu estava a olhar e a dizer: “Lá está o esboço de uma escada. E aquele espelho fico muito bem.” Agora, chego aqui e é mesmo um espelho, é mesmo uma escada. Não percebes nada disto!»

SLC – Como foi a reacção do público ao espectáculo Deseja-se Mulher?

VST – Adesão, adesão completa. Também era tudo gente convidada. Muito entusiasmo. Lagrimetas do Amado. O Amado não conseguia calar o seu entusiasmo pelas coisas: Estão as pessoas a representar e ele virado para o público, a chamar a atenção, «Isto é que é teatro!» Durante a representação, quantas vezes eu estava a olhar, não para o palco, porque já conhecia o texto, mas para o Fernando Amado, para ver a cara dele, as expressões que fazia. E isto pegava-se aos actores. Ele adorava os actores.

Fernando Cabral Martins (FCM) – Mas como é que isso se entende, estar a comentar a representação? Devemos entender como a manifestação da impossibilidade de teatro num país em que havia Censura ou era uma forma de teatro especial que nunca se deixava de estar numa espécie de plano intermédio daquilo que é teatro e daquilo que não é teatro?

VST – Tudo decorria numa atmosfera de grande encantamento e maravilhamento. Era uma maravilha. E essas outras coisas: a distância; os efeitos capa-brechtianos; a cortina entre o palco e o público. Todas essas regras do teatro profissional, do teatro espectáculo, consignado, ali estávamos perante outra coisa. Decididamente outra coisa. Tudo decorria no encantamento, no maravilhamento. A tal ponto que, a certa altura, nem o Almada nem o Fernando Amado podiam esconder o maravilhamento perante aquilo que se estava a passar. Esse encantamento era transmissível.

FCM – Isso é «O Público em Cena». Era uma reacção do público, irreprimível.

VST – Isso em parte explica todo o período de grande nervosismo do próprio Almada. As coisas não decorriam como num teatro profissional. Eram tudo actores amadores. Alguns não tinham grande experiência cénica. Alguns não tinham mesmo nenhuma. A Para a Zita e a Céu Guerra foi o primeiro trabalho a sério. O Fernando Amado não era profissional. A forma de fazer teatro do Fernando Amado matem-se ainda hoje em muitos dos actores que trabalharam com ele. Uma forma hierática: propriedade no dizer o texto. Entender o texto – e o texto entendido como o verbo poético. E o teatro entendido como uma expressão, por excelência, da Poesia. Neste caso, a Poesia corporizada e vocalizada. Era a candura, a inocência do Amado – ao serviço daquilo que ele entendia ser a grande poesia e a grande arte.

SLC – Essa concepção de teatro era partilhada pelo Almada?

VST – Totalmente. Evidente. Quando o Amado faz a interpretação do Antes de Começar, o tipo de representação era exactamente o mesmo. A graciosidade de um ou outro gesto e o texto!

A atmosfera que vivíamos na Casa da Comédia era como se aquilo fosse uma capela. Um cerimonial quase religioso, embora sem religião, e daí os actores e tudo, como se fossem sacerdotes, sacerdotizas dessa religião maior que era o teatro. O Amado era amigo do Eduardo Scarlatti. Um dos livros do Scarlatti era precisamente A Religião do Teatro. Que a rapaziada lia. Eu próprio li.

Aquilo decorrida numa atmosfera de um grande respeito uns pelos outros. Não correspondia nada àquelas coisas que se diziam do teatro e as casas de meninas...

SLC – E hoje, Deseja-se Mulher tem lugar nos nossos palcos?

VST – A fazer hoje algum sentido não era a apresentar num palco profissional. Mas com o mesmo tipo de espírito que animou esta aventura. A palpitação poética que sai da peça é incompatível com o teatro profissionalizado, integrado numa política do espectáculo. Esta é uma peça absolutamente dramática.

 

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Vítor Silva Tavares (1937-2015)