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Fernando Pessoa - Teoria Literária
Medium
Fernando Pessoa
BNP-E3, 107 – 5–14
BNP-E3, 107 – 5–14
Fernando Pessoa
Identificação
"António"

[BNP/E3, 107 – 5–14]

 

 

"António"

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A novela dramática de António Botto, à parte a sua límpida e exacta execução, o seu suave contorno psicológico, e a perfeita harmonia nela entre a matéria e a forma, tem como característico particularmente distintivo que, tratando embora um caso diversamente escabroso, onde seria fácil qualquer lapso de mau gosto ou de má reserva, de qualquer deles se afasta resolutamente. No tratamento desse complexo caso sexual nada há que esteticamente perturbe ou moralmente incomode. Nem sequer o assunto transborda, contido como é pela sobriedade da sua verdade, ou a sua execução se desvia, presa como é das melhores solicitações da beleza.

Todo o assunto tem a tentação que dele é própria. Todo artista tem a tentação própria daquele assunto que lhe é principal, pois para cada um há um principal assunto. Nos assuntos concentrados, e por isso mesmo frios, a tentação natural é a da sobriedade excessiva, pela qual ficarão gélidos, como é frequente no classicismo. Nos assuntos expansivos, e por isso mesmo transbordantes, a tentação natural é a da exuberância extrema, pela qual ficarão dispersos, o que é vulgar no romanticismo. O senso estético do artista, o seu "tacto" por assim dizer, consiste ou em dominar directamente, por uma exuberância espontânea a frieza dos primeiros, por uma cautela lógica a exuberância dos segundos, e

 

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assim dar equilíbrio ao que naturalmente o não tinha; ou em de tal modo escolher o assunto que nele residam, paralelos, elementos íntimos de sobriedade e expansão, que assim, por si mesmos, entre si se equilibrem.

Tudo isto, assim exposto como se fosse produto de um pensamento ou de uma regra, não resulta nunca, na realidade, de uma regra ou de um pensamento. Nada, que seja arte, resulta de uma aplicação lógica. As forças que orientam ou coordenam são produto, em arte, da mesma sensibilidade a que se contrapõem. O verdadeiro artista é aquele que, criando súbita e irreflectidamente, criou contudo, querendo sem que o quisesse, com equilíbrio e medida. É no artista, isto é, na sensibilidade dele, que é própria, que está natural a regra; na inteligência do artista, que é a de toda a gente, não está mais que artifício, crítica estranha e posterior. O pensamento do verdadeiro artista não é uma sobreposição da lógica, mas uma disposição harmónica da própria sensibilidade.

Escolheu António Botto um assunto para a sua novela dramática – ou, melhor, escolheu-se nele esse assunto – no qual estão intimamente ligados dois elementos contrários em natureza, mas unidos – direi mais, aunados – em formarem um só assunto. São eles um cruzamento de linhas sensuais diferentes – elemento naturalmente expansivo e complexo, e a tragédia nítida e una que provém naturalmente desse cruzamento – elemento naturalmente sóbrio e simples. De tal modo os dois elementos da novela se con-

 

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substanciam e entrepenetram, que nenhum deles deixa ao outro o predomínio que qualquer deles assim arrancaria, não ao outro, mas à beleza.

"António" prestava-se, em mãos inábeis ou precipitadas, a numerosos desvios e acidentes. Nada mais fácil, a um artista incerto, que o ter inserido ou sub-temas lógicos, ou pseudo-teses morais ou imorais na estrutura ou lição da novela. Nada mais fácil, a um artista impetuoso, que o deixar-se seduzir pelas possibilidades românticas do assunto, quando não pelas solicitações sensuais dele. António Botto evitou uma coisa e outra, e, fosse por instinto directo ou instinto reflexo, o que ficou, que é a obra, é violento sem ofender a estética, escabroso sem molestar a moral.

Convém agora considerar, porque tem interesse, não o que seja isto de um assunto violento que não ofende a estética, pois todos compreenderão que os haja ou como isso seja, mas o que seja, e como seja, um assunto escabroso que não molesta, já não a estética, mas a mesma moral. Não vou, pois, renovar a discussão confusamente estéril das relações entre a moral e a arte. Concederei para o caso – embora absolutamente não conceda – que toda obra de arte tem que ser moral. Aceito assim o combate, que será rápido, no próprio campo do adversário.

Ao assunto de "António" chamei escabroso, não, em verdade porque o considere eu escabroso, mas porque lhe dei o nome natural que qualquer lhe daria. Continuarei de usar desta palavra "escabroso" para designar o que em qualquer obra pode ser considerado imoral. Não direi "imoral",

 

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em vez de "escabroso", pois isso implicaria desde logo a resolução do problema, e no sentido precisamente oposto àquele em que para mim se resolverá.

A escabrosidade pode consistir em uma de três coisas, conforme suponhamos lesada nela ou a moral humana profunda, ou a aplicação superficial dessa moral, ou simples acidentes morais, os usos ou convenções de certo tempo ou lugar. Assim, e derivando os exemplos, para maior simplicidade, da moral sexual, o incesto lesa a moral humana profunda, o adultério a aplicação superficial dela, a poligamia a moral acidental de uma sociedade monogâmica, porque não de uma que, embora intensamente moral, o não seja. Havendo, pois, gradações na moral, há, correspondentemente, gradações na lesão dela.

Se consideramos, com aquela independência de espírito a que a reflexão naturalmente nos compele, que o acidental é por natureza contingente e portanto, por mais que dure, passageiro, e que a aplicação de qualquer princípio é também, porque é aplicação, sujeita às contingências e distorções de ser aplicação e do meio ou maneira em que se aplica, concluiremos que não pode legitimamente ser apodado de imoral qualquer acto, teórico ou prático, que lese simples acidentes morais, que não lese a moral fundamental, as grandes repugnâncias humanas, os instintos sociais pelos quais se conserva emotivamente a substância orgânica da vida.

 

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Deixei implícita, nas palavras que acabo de escrever, uma distinção entre actos teóricos e actos práticos. Designo por actos práticos aqueles que procedem da aplicação directa, ou centrífuga, da vontade; por actos teóricos os que procedem da sua aplicação indirecta, ou centrípeta. Os primeiros são propriamente acções, e entram na vida real; os segundos são propriamente inacções – expressões artísticas ou teorias filosóficas –, e pairam, ideais, acima dela. Os primeiros estão portanto forçosamente sujeitos às sanções imediatas, morais ou legais, daquela vida real a que pertencem; os segundos não são súbditos senão das sanções remotas, e só morais, daquela vida ideal que é a vida abstracta da humanidade inteira. Há sem dúvida bigamias legítimas e adultérios justificáveis, mas lá estão os juízes e os vizinhos para lhes embargar eficazmente a legitimidade e a justificação. Os mesmos juízes, porém, que condenaram por bigamia, lerão sem asco um tratado em que se a defenda; os mesmos vizinhos, que censuraram por adultério, assistirão sem revolta a um drama em que se o justifique. Quando condenaram ou censuraram eram juízes ou vizinhos, ou pessoas reais; quando leram ou ouviram eram simples homens, ou pessoas ideais. As mesmas coisas que os feriram como membros de uma sociedade os não afectaram como membros de todas.

 

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Suponhamos, porém, e seguindo sempre a linha dos exemplos distintivos que primeiramente demos, que aquilo que esses leram ou ouviram fosse em defesa, ou simples exposição, de um caso de incesto: tê-lo-iam eles lido ou escutado com a mesma indiferença ou o mesmo apreço? Dirá o leitor instintivamente, e di-lo-á comigo, que tudo depende da maneira da defesa ou exposição. Sim, "tudo depende", e nisso nos aproximamos, sem os privilégios de Alexandre, do nó górdio da questão.

Toda obra de Arte é uma trindade una, pois se compõe indivisivelmente de três partes – o conjunto, o desdobramento desse conjunto, e a matéria em que esse conjunto é desdobrado. Assim um drama se desdobra em actos e cenas, e esses actos e cenas se realizam através de palavras e gestos. Suponhamos que em certo drama as palavras ou gestos, ou certas palavras ou gestos, são escabrosos. De duas coisas uma: ou formam parte expressiva e integrante da cena ou cenas em que figuram, ou a não formam. Se a não formam, são, por supérfluos, injustificáveis, e, por injustificáveis e escabrosos, simples e indefensavelmente imorais. Se, porém, a formam, há então que considerar, do mesmo modo e no mesmo sentido, a cena ou cenas em que figuram e de que se provou serem a natural expressão. E assim se chega à conclusão de que, em qualquer obra de arte, o que importa é o conjunto,

 

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aquele coordenado orgânico que se forma por, e através de, a harmonia expressiva das suas partes componentes. Se, portanto, a impressão que recebemos do conjunto de uma obra de arte for moral, essa obra de arte será moral, qualquer que seja a escabrosidade, ou imoralidade aparente, dos elementos que a compõem.

Tanto assim é que todos os homens naturalmente assim pensam. Em toda obra, em que sintam, ou por impressão pessoal ou por sugestão tradicional, uma moralidade de conjunto e substância, deixam passar, não só sem revolta, mas até com aceitação, escabrosidades que imediatamente repugnariam em qualquer outra obra. Isto sucede particularmente com os textos tidos por sagrados, aos quais, por sagrados, está ligada necessariamente a ideia de uma moralidade de conjunto, e com os textos dos grandes poetas e artistas do passado, aos quais, por grandes, se atribuem por instinto todos os atributos da grandeza, e, entre eles, a moralidade. O cristão bíblico, que lê, não só sem repugnância, mas com devoção, os passos mais escabrosos da Bíblia, prontamente censuraria, se não pudesse fazer mais, ao que escrevesse iguais passos em uma obra profana. E se o censurado alegasse, em favor, por exemplo, de um Cântico dos Cânticos próprio, que o escrevera, como do bíblico se diz que foi escrito, com uma intenção religiosa e simbólica, não faria senão tornar-se réu da dupla acusação de que à imoralidade da indecência acrescentava a imoralidade maior da blasfémia

 

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ou da hipocrisia. O inglês espontaneamente moralista da era victoriana, que lia, não só sem revolta, mas com apreço, as maiores escabrosidades de Shakespeare, faria de um Dickens ou de um Thackeray um banido literário e social se ele ousasse sequer aproximar-se delas. E se o autor hipotético assim banido argumentasse, indignado, com o exemplo de Shakespeare, e com a alegação de que, quanto maior e mais lido o autor, mais força, destaque e influência têm as escabrosidades que escrevera, receberia sem dúvida a resposta humana e confusa, "Mas v. não é Shakespeare". Resposta absurda, resposta deslocada, mas, se a traduzirmos para lógico, perfeitamente justa, pois o que nela se quer dizer é que tal é a grandeza – grandeza não só real mas reconhecida – de Shakespeare que as escabrosidades que escrevesse se perdem, se purificam, na chama dessa grandeza; que ele, autor protestante, ainda que fosse igual a Shakespeare, nunca seria sentido como tal pelos seus contemporâneos, pois lhe falta a sagração humana das eras e da tradição; e que, portanto, não sendo sentido como grande, não podem as escabrosidades que escrevesse perder-se e purificar-se na chama, que ainda não há, de uma grandeza que ainda não chegou.

Quer isto dizer, em suma, que somos ordinariamente injustos para com os nossos contemporâneos. É natural e humano que o sejamos, porque a sua obra, visto que decorre perante nós, nos é visível como pormenores,

 

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invisível – ainda que já esteja completa – como conjunto; porque para ela não foi ainda promulgado o decreto régio da Tradição, da qual todos vivemos súbditos, e pela qual sabemos que Shakespeare é grande já antes de o ler, e que Homero é grande sem nunca o podermos ler; porque, enfim, e não olhando já à intromissão de elementos naturais mas extra-críticos como a aversão ou a inveja, vivemos na mesma época que o autor, sofremos as mesmas influências que o autor, somos em certo modo o autor, e assim a nossa crítica mais desinteressada terá sempre os defeitos inevitáveis da auto-crítica.

O verificar, porém, que somos ordinariamente injustos para com os nossos contemporâneos, e que é natural e humano que o sejamos, não quer dizer que não devamos esforçar-nos, quanto em nós caiba, para o não ser. É essa a atitude moral, pois a moral não é mais que uma correcção artificial da natureza. Efeituaremos esse intento se, conhecendo a nossa incompetência para sentirmos as obras de um autor como conjunto, nos dispusermos a considerar cada obra como conjunto e totalidade, como  a única do seu autor, como de um autor que não sabemos quem seja. Assim nos aproximaremos de um vago arremedo de justiça. E, se o fim com que examinamos uma obra é o de saber se ela é moral ou não, limitemo-nos, sem olhar a quem é o autor ou de que mais é autor, a perguntar-nos se a impressão total da obra, se a lição do seu conjunto, é moral, isto é, se essa impressão ou lição lesa ou não lesa a moral fundamental, as grandes repugnâncias huma-

 

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nas, os instintos sociais pelos quais se conserva emotivamente a substância orgânica da vida.

A impressão que deixa, a qualquer leitor assim imparcial e justo, a leitura da novela dramática de António Botto é uma sóbria impressão de tristeza. Sensualidades complexas, choques de temperamentos que uns aos outros, e a si mesmos, se não compreendem, situações naturalmente falsas – tudo isso tem foz numa tragédia, como na vida, e porque é a vida. Que mais se pode exigir, quer em arte, quer em moral? "O resto é silêncio", como Hamlet disse.

 

FERNANDO PESSOA

Versão dactilografada do testemunho impresso publicado por Fernando Pessoa  com o título: «"Antonio". Estudo crítico de Fernando Pessoa», in António Botto, António. Novela Dramática extraída de uma Antiga Tragédia Grega com uma Carta de Guerra Junqueiro e um Estudo Crítico de Fernando Pessoa, Tipografia da Emprêsa do Anuário Comercial em Lisboa, 1933,  pp. 125-157.

Classificação
Literatura
Contemporâneos
Dados Físicos
Dados de produção
Português
Dados de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Palavras chave
Documentação Associada
Pauly Ellen Bothe, Apreciações literárias de Fernando Pessoa, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2013, pp. 344-350. [Em aparato genético.]